NOM CONSUMIMOS PAISAGEM
As saídas ao monte som mais que um entretimento ou um exercício físico. Também som algo mais que um consumo compulsivo de beleza e de paisagem. Nom nos interessam os reptos, as marcas ou os desafios desportivos. Botar-nos ao monte significa saúde, convivência, conhecimento e luita. Por isso nas nossas mochilas nunca vai faltar umha bandeira, um sprai que nos dé voz ou um acto-manifesto reivindicativo. Queremos demoler a dissociaçom que o capitalismo espanhol faz das nossas vidas, enlatando-nos em tempos mortos para o lezer-consumo, para o trabalho, para a política. O novo tempo de vida vai ser simultaneamente um tempo de convivência, de desfrute, de esforço e luita. Queremos romper com qualquer tempo produtivo-responsável, valorizado e rotinário, para abraçar a vida e estabelecer umhas novas relaçoes sociais. O conhecimento só tém lugar no mundo da vida.
Combatemos a tecnocultura mercantil-promocional espanhola, que só produz espaços de lixo. Nom queremos olhar à nossa Terra convertida em 35.691,9 Qm2 de merda. Nom queremos que a nova ordenaçom tecnológica-metafísica do mundo medie os lugares nos que nascimos e vivemos. Esta terra na que jogamos, esta terra na que nos rebalgamos, esta terra na que bebemos e da que tiramos os alimentos é nossa.
Esta terra, este lugar, este espaço, esta paisagem som nossos porque neles estám inscritas as nossas vidas e a nossa memória colectiva e só nós temos direito a mediar novas interacçoes e articulaçoes específias das relaçoes sociais (sócioculturais) nom mercatilizadas. Ou defendemos os nosso espaços-de-vida ou sucumbimos na tumba do espaço-lixo espanhol, que faz incerto o lugar no que estamos, obstaculiza o caminho polo que imos e desmonta o sítio de onde vimos.
Combatemos implacavelmente a nova engenharia mercantilista da tam socorrida “posta em valor” dos recursos naturais, a face contável do espaço-lixo de marca. “A exteriorizaçom do espaço-lixo permitiu a profissionalizaçom da desnaturalizaçom, um ecofascismo benigno que situa um tigre siberiano em perigo de extinçom num bosque de tragaperras. O ar, a auga, a madeira: todo se realça para produzir umha hiperecologia santurronamente invocada para lograr o máximo rendimento”. O sistema produtor de mercadorias transforma o nosso espaço e o nosso tempo em mercadorias. A economia trabalha com eficiência para transformar toda a nossa terra num fedorento depósito de lixo à vez que nos extingue como povo. Os fundamentos naturais som destruídos pola lógica abstracta do dinheiro; mas a reparaçom dos fundamentos naturais, por sua vez, custa dinheiro, que primeiro tem de ser “ganho”. Para poder reparar as destruiçoes causadas polo dinheiro, a sociedade, portanto, tem de “ganhar” mais dinheiro e provocar mais destruiçoes. É fácil calular que tal círculo se torna cada vez mais vicioso, para prejuízo da natureza e dos fundamentos da vida. Assim é impossível solucionar o problema ecológico a partir da lógica estrutural do sistema.
Devemos impedir a vitória da economia sobre a vida. O dia que a primavera só seja umha campanha promocional do Corte Inglês esse dia teremos perdido para sempre o direito à dignidade.
Sabemos ademais que o lezer contemporáneo acabou configurando-se como um conjunto de actividades do tempo social decisivas em quanto aos mecanismos de consenso, reproduçom e estabilizaçom social. A indústria cultural-desportiva-de tempo livre converte em saneados negócios as actividades de lezer dos seus clientes e transforma os lugares que antes tinham umha complexa funcionalidade social e que suportavam as múltiplas manifestaçoes da sociabilidade em espaços-lixo mercantilizados para a roda da autovalorizaçom do dinheiro.
Se os galegos e galegas perdemos o controlo dos nossos espaços (e hoje, por diversas razoes, já é um facto imparável para quase a metade do nosso País) as novas categorias sociais da engenharia do espaço-lixo farám-se irreversíveis. Hoje já podemos comprovar como a guerra é total e implacável. Já nom há espaços de paz e de vida. Todo o nosso território é já um território de conflito, desde os centros urbanos, às periférias das cidades, passando polos cumes das nossas montanhas. É um conflito de dimensoes ambientais e sociais relacionado com o processo de mercantilizaçom total, de depressom comunitária, desposesom e desarticulaçom territorial, que está provocando profundas e irreversíveis transformaçoes funcionais dos nossos espaços.
As intervençoes do sistema capitalista espanhol sobre a nossa Terra som intervençoes planificadas e desestruturadoras, tratam-se de actos de violência sistemática. Esta violência exercita-se sobre o nosso espaço e a nossa sociedade fundamentalmente em forma de projectos de infraestruturas de diverso tipo. Infraestruturas relacionadas com a rapidez e capacidade dos fluxos de informaçom e a mobilidade pessoal como som as infraestruturas de transporte: estradas, autovias, auto-estradas e comboios de alta velocidade; infraestruturas energéticas: centrais hidroeléctricas, térmicas e incineradoras, parques eólicos, espólio de matérias primas; infraestruturas da turistificaçom e do tempo morto do lezer-consumo: passeios marítimos, portos desportivos-vip, áreas recriativas, parques e redes naturais; parques residenciais; concentraçoes parcelárias; controlo e depredaçom florestal: monocultivos, celuloses, incêncidos...etc.
Esta guerra total conta, aliás, com toda umha panóplia de novos conceitos, de novas sugerências, que som, dalgum jeito, o aduvo necessário para os novos consensos idelógicos sociais: desenvolvimento sustentável, horizontalidade das políticas ambientais, internalizaçom dos custos ecológicos, progresso... Estas novas figuras de reflexom teórico-filosófica e positivadoras da relaçom de valor devem pôr em consonância dinheiro e natureza sobre o pano de fundo de um mercado global pautado pola “eficiência económica” e polo “desafio ecológico”.
Nom somos turistas na nossa própria Terra. Nom consumimos paisagem. Porque nunca se consume o que forma parte da identidade própria. Só se consumem as “cousas”, o que está fora e é exterior. O chao que pisamos nom se compra nem se vende. Nom tém valor de câmbio. As nossas montanhas, a nossa paisagem nom som “cousas”, nom som “mercadoria”; som Terra, som Pátria, som País. País e paisagem tenhem a mesma raiz etimológica (do latim “pagus”: baliza ou marco metido na terra). De “pagus”, um rincom rural limitado por esteios, derivou “pagensis”, a ideia de um recorte ou espaço de território que se abrange num lance de vista. “Pagensis” evoluiu para “país” e daí “paisagem”. “O processo de construçom nacional é um processo de territorializaçom da história e de historicidade do território que se plasma visual -e simbolicamente- na paisagem”.
Paisagem som percepçoes, vivências sensíveis, emoçoes, sensaçoes e experiências, é realidade ecológica e social, é memória histórica reflectida ao longo dos tempos. Economia moderna (dinheiro) é, pola contra, abstracçom social (abstracçom geralizada e “real” da forma do valor) porque abstrai e destrui a referência ao mundo sensível e viola a existência de qualquer referência de conteúdos ou qualidade própria. Fazer valer as abstracçoes no mundo real signifia destruir a realidade, a negaçom brutal de todo o mundo somatossensorial e social. Nengumha propriedade jurídica pode separar aos galegos e galegas da sua terra, dos seus recursos naturais, já seja a propriedade de um Estado, de umha instituiçom pública ou a propriedade de um particular. O poder histórico dos galegos e galegas sobre a terra nom é nengum poder abstracto jurídico-polítio, é um poder de posessom, de controlo, de auto-administraçom comunal. Este poder é inegociável e irrenunciável.
Os cruçados do iluminismo (de toda cor e pelagem) , abraçados à roda de umha metafísica secularizada sinalam o patíbulo para os fundamentalistas: os “Senhores da Terra” (aristócratas das essências, devotos dos ícones telúricos). Que legitimidade tenhem os eunucos do chapapote para condenar a nossa relaçom sensível e identitária com a Terra? Eles, que se autoflagelam nos ícones e ídolos mais abstractos do iluminismo, que veneram santos laicos, que levantam teogonias, iconografias e hagiografias, que se escravizam a milheiros de vinculaçoes simbólicas exteriorizadas substraídas à reflexom, a universalidades abstractas (como a economia e o dinheiro) e ao fetichismo da democracia polítia de massas , que se aferram a cláusulas meta-lingüísticas, que construírom sujeitos históricos colectivo-metafísicos, que ontologizárom as formas próprias de socializaçom (capitalista) e os seus conceitos básicos, que convertêrom o tempo e a história numha paisagem lunar de monocoltivo intensivo, que “naturalizárom” as construçoes históricas da modernidade e as categorias ideológicas de legitimiaçom... Eles, que se arrastam por umha nova pseudo-natureza esterilizada e automatizada de desing-cyborg?
A geografia, a paisagem, a Terra, pode ser, sem dúvida, um ideologema nacionalitário, mas, se se quer, exactamente ao mesmo nível que operam outros ideologemas específicos ou elementos nacionalitários como a História ou a língua. Todos eles, formulados e convertidos em elementos nacionalitários por parte da intelectualidade nacionalista, permitírom fundamentar a existência da Naçom, explicitar o processo de construçom nacional, assim como o complexo simbólico que define umha identidade diferenciada. Que pode haver de espúrio no valor simbólico-identitário da Terra e da paisagem ou, se se quer, na sua “sobredeterminaçom” ideológica ligada ao projecto nacionalista? Exactamente a mesma “adulteraçom” da utilizaçom da História como valor ideológio fundamental, submetida, sempre, a um processo selectivo-configurador, mais ou menos ideológio, por parte dos historiadores. Há um nacionalismo “geográfico” (como necessidade de descoberta e reapropriaçom do espaço) na mesma medida que há um nacionalismo “lingüístico” ou um nacionalismo “histórico”, nem mais nem menos.
O tratamento da paisagem como referente identitário reproduziu-se em todas as Naçoes emergentes. Autores de muito diversas latitudes, imersos num processo político-cultural de construçom nacional tenhem feito do tema da paisagem um factor de criaçom de consciência nacional. Agora mesmo é um fenómeno recorrente nas literaturas produzidas em África.
A paisagem, concebida como bem colectivo da Naçom e elemento importantíssimo dentro do património identitário, também tivo na Galiza grande importância em toda a produçom do ressurgimento nacional e foi relevante para os momentos fundacionais da literatura nacional galega, onde a paisagem é a forma mais visível de dizer a naçom, a pátria, o país. Rosalia de Castro, máximo exponhente do ressurgimento cultural galego, escreve no prólogo de “Cantares Gallegos” (1863):
“(...) falsidade com que fóra de aqui pintam aos filhos de Galiza como a Galiza mesma, a quem geralmente julgam o mais despreciável e feio de Espanha, quando acaso seja o mais fermoso e digno de gavança.
(...) Eu que atravessei repetidas vezes aquelas soidades de Castela que dam ideia do deserto; eu que percorrim a feraz Estremadura e a extensa Mancha, onde o sol cai a promo alomeando monótonos campos onde a cor da palha seca empresta um tom cansado à paisagem que rende e entreistece o espírito, sem umha ervinha que distraia a mirada que vai perder-se num céu sem nuvens, tam igual e tam cansado como a terra que cobre; eu que visitei os celebrados arredores de Alicante, onde os olivos com o seu verde escuro, sementados em fila e de raro em raro, parecem chorar de ver-se tam solitários, e vim aquela famosa horta de Múrcia, tam nomeada e tam alabada, e que, cansada e monótona como o resto daquel país, amostra a sua vegetaçom tal como paisagens pintados num cartom com árvores postas simetricamente e em carreirinhos para deversom dos nenos, eu nom podo menos de indignar-me quando os filhos dessas províncias que Dios favoreceu em fartura, mas nom na beleza dos campos, burlam-se desta Galiza competidora em clima e galanura com os países encantadores da terra, esta Galiza, onde todo é espontáneo na natureza e onde a mao do home cede o seu posto à mao de Deus.
(...) A terra coberta em todas as estaçoes de ervinhas e de flores, os montes cheios de pinheiros, de carvalhos e salgueiros, os ligeiros ventos que passam, as fontes e os torrentes derramando-se fervedores e cristaínhos, verao e inverno já polos risonhos campos já em profundas e sombrisas ondanadas... Galiza é sempre um jardim onde se respiram aromas puros, frescura e poesia... e a pesar disto chega a fatuidade dos ignorantes, a tanto a indigna preocupaçom que contra a nossa terra existe, que ainda os mesmos que puidêrom contemplar tanta fermosura (já nom falamos dos que se burlam de nós sem que jamais nos tenham visto nem ainda de longe, que som os mais), ainda os que penetrárom na Galiza e goçárom das delícias que oferece atrevêrom-se a dizer que Galiza era... Um cortelho imundo!! E estes eram quiçá filhos daquelas terras abrasadas de onde até os passarinhos fogem! Que diremos a isto? Nada mais senom que tais fatuidades a respeito do nosso País tenhem algumha comparanza com a dos franceses ao falarem das suas eternas vitórias ganhadas aos espanhóis.
(...) Moito sinto as injustiças com que nos favorecem os franceses, mas neste momento quase lhes estou agradecida, pois que me proporcionam um meio de fazer-lhe mais palpável a Espanha a injustiça que ela à sua vez connosco comete (...)”.
Rosalia, Murguia, Pondal, Viqueira, Risco, Castelao, Otero Pedraio, Ugio Novoneira ..., todos eles alodem, em maior ou menor medida, à paisagem cultural galega como elemento de identidade nacional. Foi Castelao quem dijo aquela célebre e definitória frase: “Para nós a Pátria é um sentimento natural, inspira-se em realidades sensíveis aos cinco sentidos. A Pátria é a Terra”. O nacionalismo geográfico, a paisagem concebida como bem colectiva da Naçom e como elemento importantíssimo dentro do património identitário tivo em Otero Pedraio, nacionalista e geógrafo, o seu precursor e máximo exponhente (a obra de Carme Fernández Pérez-Sanjuliám, “A construçom nacional no discurso de Ramom Otero Pedraio”, aporta reflexoes muito interessantes) . Otero foi o primeiro intérprete da forma física da Galiza, concebindo-a e explicando-a através dos seus estudos geográficos, como umha unidade independente, com pessoalidade própria dentro da geografia peninsular. Interpretando, pois, a geografia e a história da Galiza, Otero Pedraio tem alçado um modelo da Galiza que fijo antiquado o velho modelo decimonónico, entre folcórico e mítico, construído polos precursores.
Otero mantém esta postura de reivindicaçom activa do estudo e descoberta física do País, ainda, depois da guerra. Ricardo Gurriarám lembra-nos o apoio de Otero à criaçom do clube de montanhismo Pena Trevinca Montanheiros de Galiza, actividade que cumpre pôr em relaçom nom só com os movimentos excursionistas, senom, e moi especialmente, com a singular funçom que nestes primeiros anos da posguerra exerciam este tipo de movimentos associativos. Ricardo Gurriarám explica-o assim: “Fora umha actividade solidária de dom Ramom com o societarismo montanheiro para-oficial na que confluíam: amor à natureza e a paisagem galega, divulgaçom das riquezas ocultas, potenciamento do associacionismo “resistente” com o fim de aglutinar adessoes, revitalizaçom das actividades desportivas montanheiras, em definitiva, ajudar ao desenvolvimento de foros, até certo ponto críticos, que giravam em torno a centros de interesse “modernos”, neste caso: o fomento do associacionismo montanheiro fora do marco ideologizado que imperava na época”. Gurriarám engade que logo da intervençom de Otero Pedraio no ano 1.949, entre outras, o clube de montanha chegaria a sobrepassar a cifra dos 2.000 associados, “umha quantidade significativa no associacionismo desportivo de âmbito galego que, agás nos clubes de futebol, nom atopamos outra com semelhante impacto afiliativo”.
No caso de Otero Pedraio concita-se a mesma imagem reduzionista, confusa e cheia de preconceitos que já acontecera com Castelao, Rosalia e outros escritores, políticos e intelectuais nacionalistas, numha sistemática deturpaçom da sua significaçom ideológica. O Castelao humorista ou a Rosalia Chorona estám à mesma altura que o Otero lírico-romântico, esteticista, irracionalista e idealista-simbólico. A maior parte dos estudos sobre Otero Pedraio som interpretaçoes ilhadas e iludem a relaçom entre paisagem e a ideia de Naçom. Tem-se feito, como se tém feito com outros e outras escritores e escritoras nacionalistas, umha leitura reduzionista da sua obra ao centrar a interpretaçom no aspecto histórico da sua narrativa ou nos elementos culturais, deixando de lado os contidos mais essencialmente ideológicos.
Os nacionalistas galegos do Seminário de Estudos Galegos, dos Ultreias, da COGARRO ou da AMAL botamo-nos a andar polo País adiante para sentir, conhecer e defender a nossa Terra. Porque, como diria Otero Pedraio “para conhecer um País há que andá-lo a pé”. “O facto de que alguns galegos percorram a sua terra a pé e andando é merecente de ter um posto entre os feitos denotativos da nossa renascença” (Vicente Risco). Estas palavras de Vicente Risco cobram hoje um significado muito especial. Botar-se hoje a andar, desafiando aos eunucos do chapapote, ao progresso do capitalismo automobilístico e aos depredadores da Nossa Terra, volve a ser, mais que nunca, um acto de resistênia e de renascença nacional.